domingo, julho 28, 2013

Sua Excelência “o doutor”

Muito já se escreveu sobre esse tema - chamar de doutor quem não tem essa titulação!!! Um grande profissional da área do direito escreveu e deixou claro em linhas universais: “Minha recusa ao “doutor” é um ato político”. Um ato de resistência cotidiana, exercido de forma solitária na esperança de que um dia os bons dicionários digam algo assim, ao final das várias acepções do verbete “doutor”: “arcaísmo: no passado, era usado pelos mais pobres para tratar os mais ricos e também para marcar a superioridade de médicos e advogados, mas, com a queda da desigualdade socioeconômica e a ampliação dos direitos do cidadão, essa acepção caiu em desuso”. Foi essa a definição que absorvi desse incontestável jurista. A nossa língua, ferramenta das mais importantes da nossa cultura é que determina como deve ser o que nos rodeia. Ela é maior e mais eficaz que qualquer lei outorgada pelos responsáveis de criá-la. Raríssimas expressões humanas não são impostas pela linguagem. Tão forte é que domesticá-la é praticamente impossível. Tão indomável que até mesmo nós, mais vezes do que gostaríamos, acabamos deixando escapar palavras que faríamos de tudo para recolher no instante seguinte. Nossa língua é coisa viva e só muda quando mudam as pessoas, as relações entre elas e a forma como lidam com o mundo. Afinal, cada tijolo da construção de nossas falhas é ferramenta de análise de psicanalistas. Somos amargamente vigiados por eles. A linguagem é poderosa e massacrante quando se quer subordinar pessoas. Eliane Brum, jornalista e escritora, com prêmios de toda ordem pelos trabalhos de reportagem, comenta que: ”se usamos as palavras para embates profundos no campo das ideias, é também na própria escolha delas que se expressam relações de poder, de abuso e de submissão”. Na verdade, esse vocábulo vem de um período da nossa História que Dona Maria (a louca) ‘baixou um alvará’ pelo qual os advogados portugueses teriam de ser tratados como doutores nas Cortes Brasileiras. Então, por uma "lógica" um tanto horripilante, todos os bacharéis do Brasil, magicamente, passariam a ser chamados de doutores. Não é necessária muita inteligência para perceber os erros desse raciocínio. Do ponto de vista acadêmico, doutor é todo aquele universitário que se gradua em determinada área de conhecimento e em seguida adentra, cursa e defende uma tese de doutorado, obedecendo todas as regras cabíveis e exigidas pela legislação brasileira. Entretanto, a tradição faz com que chamemos de doutores os médicos, dentistas, veterinários, advogados, etc., mas isso não os torna doutores de forma alguma. O jurista a quem me referi acima comenta que: “quando coordenador do Curso de Direito tive o desprazer de chamar a atenção de (in) docentes que mentiam aos alunos dessa maneira”. Continua ele: “Eu lhes disse, inclusive, que, em vez de espalharem mentiras ouvidas de outros, melhor seria ensinar seus alunos a escreverem, mas que essa minha esperança não se concretizaria porque nem mesmo eles sabiam escrever”. Há poucos dias atrás, num dos corredores da escola onde trabalho, conversava com uma ilustre colega e amiga, Doutora Valéria Stranghetti, essa sim é doutora como todas as pompas, (doutora em Biologia Vegetal pela Universidade Estadual de Campinas em 1996), disse-me ela, que em conversa com um profissional da área médica recebeu o indelicado pedido para que o chamasse de doutor, já que por um momento ela o havia chamado de ‘senhor’. De imediato ela perguntou qual foi o título de sua tese de doutorado. Ele não tinha, é claro. Disse-lhe educadamente minha ilustre amiga: “Bem, de agora em diante quem vai me chamar de doutora é o senhor, porque essa titulação faz parte do meu currículo”. Num exame médico rotineiro de eletroneuromiografia que fiz há poucos dias, fui tão mal atendido por uma profissional da medicina que fiquei estupefato com seu comportamento. Junto a sua assinatura havia um carimbo com dois títulos de especialista, mas não tinha a titulação de doutora. Tratou-me de forma inadequada, grosseira, quando na verdade eu esperava um mínimo de educação, mesmo que por esforço. Confesso ter imaginado como seria o movimento de clientes em seu consultório caso não fosse filiada a algum plano de saúde. Perguntei se havia tido algum problema, dado sua severidade no tratamento comigo. Ela, de pronto respondeu: ‘não estou muito bem hoje’, como se eu tivesse a obrigação de tolerar o seu estado colérico. Achei estranha a resposta, afinal de contas ela não me oferecia o serviço gratuito. Para este cronista, quando se obtém o título de doutor na especificidade que se escolhe é preciso também agregar a essa titulação, doutorado em educação, em boas maneiras, em fineza no trato com estranhos e, sobretudo em humildade. Aí sim, pode-se reconhecer que o doutorado se fez por completo, e o profissional merece com todo respeito a titulação que ostenta.

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